domingo, 14 de outubro de 2018

A Carta Das Almas



A Quaresma é uma época de meditação e oração, cuja introspecção levou o caboclo de nossa região a reinterpretar seus simbolismos, criando uma aura mística e assustadora. Este período é preocupante, o Tinhoso está a solta tentando os homens, portanto, deve-se tomar muito cuidado.

E foi justamente numa quarta-feira de quaresma após os Cânticos de Alerta num bairro próximo, que Chico Berto, ouviu dos mais velhos a famosa história das cartas das almas. Era corriqueiro ouvir sobre pessoas que pactuavam com o diabo em troca de riqueza e juventude, porém, um único dia do ano, na Sexta-feira Maior, as Almas consentiam tais privilégios à três pessoas de coragem. Todavia, essas três pessoas deveriam buscar as tais cartas no cemitério e em seguida enfrentar as diabruras das trevas, se persistentes e ilesos receberiam as dádivas pretendidas. Chico Berto, ficou inquieto com a história, dormiu mal a noite e noutro dia arrumou dois bravos companheiros, Mané Curió e Tiburtino.

As 23:30h da quinta-feira santa reuniram-se em frente ao cemitério. Muita coragem e um bom litro de pinga nas mãos. Rezaram, beberam, beberam, rezaram e beberam de novo. Quando o sino deu a primeira badalada, estavam os três em frente ao portão, receosos, bêbados e mudos de medo. Em seguida, o portão abriu e um garboso jovem de preto convidou-os a entrar. A coragem dos três quase foi embora, de pernas bambas e de braços dados entraram e vislumbraram todos os túmulos enfeitados, iluminados e o moço de preto conduziu-os até o acendedor de velas. Quando chegaram viram uma criança, como um dos vários anjinhos de pedra que enfeitam os túmulos, era realmente um anjo, que graciosamente entregou um envelope branco a cada um, pegaram e já foram saindo, achando a maior moleza. Mas, foram informados que deveriam comparecer até os fundos da igreja para selar os papéis.

Hummmm! Isso não cheirava bem, caminharam desconfiados e deram de cara com uma criatura, meio homem, meio bode preto, bufando, rosnando, soltando fogo pelas ventas. Quase desmaiaram, Mané Curió, depois de se urinar todo desembestou na carreira, saltando os túmulos como um atleta. Tiburtino foi mais audaz, topou se aproximar, mas quando sentiu uma gelada mão cadavérica tocar-lhe o pescoço gritou para todos os santos e saiu correndo, com uma verdadeira legião de capetinhas atrás de si.

Ficou Chico Berto, que sorveu a última dose de pinga, limpou a boca na manga da camisa, pegou a carta colocou em cima da mesa e pediu para que fosse selada. O diabo, pegou a carta, abriu, escreveu algo e mandou um imenso selo colado a cuspe no papel, entregou ao Chico, que saiu de costas, a passos mansos. Atrás de si ouvia-se um tropel, gritos, palavrões, choros e estouros. Assim foi ele saindo, passo a passo, lívido e suado. Quando enfim saiu, pode respirar melhor, trêmulo e cansado, parou junto a uma pedra, tirou o envelope do bolso e viu um papel branco reluzente e escrito em tinta luminosa como um vaga-lume, a seguinte frase:

-Se quiser ver seus amigos de volta, devolva esta carta.

Chico ficou louco, esbravejou, blasfemou, xingou, pensou em deixar aqueles dois covardes. Mas, eram seus amigos e fora ele quem os metera nessa encrenca, pensou alguns minutos nas riquezas, juventude, enfim....

Desconsolado, deu meia volta e correu para o portão, lá encontrou os dois do lado de dentro e um sarcástico rapaz de preto, pediu a carta de volta. Resistiu, mas viu um abismo se abrindo e o bode vindo, entregou rápido o papel, o portão se abriu e saíram correndo. Pelo caminho, Chico Berto veio batendo nos amigos e insultando-os com todos os palavrões possíveis, até que chamou atenção o suficiente para que a policia chegasse e prendessem os três por embriagues e baderna. Ao relatar o fato a policia, tomou uma surra e uma semana de cadeia por desacato.

Na venda do nhô Pedro, Chico e os amigos contavam o caso com veemência, todos achavam que era mais uma bebedeira de três aventureiros.

sábado, 6 de outubro de 2018

O Médico E O Diabo


Eles estavam buscando uma nova casa e encontraram uma com um cômodo bem singular. Só não sabiam da lenda sobre o antigo morador...

Dona Zilda, viúva de um comandante da Marinha, procurava para ela e seu filho de 32 anos, uma casa para morarem. A casa atual era grande demais para os dois, e ela queria um lugar mais aconchegante. Conheceram quase todos os corretores da cidade, viram desde terrenos até casas novas, mas nada agradava a dona Zilda. Por mais bonita que fosse a casa, ela não sentia aquele arrepio em seu coração. Até que um dia, um dos corretores ligou e disse que havia uma casa com o perfil que ela procurava à venda.
Dona Zilda não se animou muito, afinal todos diziam a mesma coisa, e eram sempre aquelas casas lindas por fora, mas horríveis por dentro, mal repartidas e com cômodos desnecessários, mas não custava nada dar uma olhada.

A casa ficava em uma das ruas mais antigas de Curitiba, e dona Zilda achou o endereço com muita facilidade. Assim que estacionou sua Mercedes, avistou o corretor de pé ao lado de um Uno vermelho. O corretor era um homem alto, de mais ou menos 1,83, muito magro e sorridente. Dona Zilda simpatizava com ele, pois diferente dos outros corretores, ele costumava apontar as defeitos das casas:

- Olá Dona Zilda! O seu filho não veio hoje?

- Bom dia Mauro. Ele não pode vir, tem um jogo de tênis essa manhã.

- Então vamos entrar.

Por fora a casa parecia antiga, não na idade, mas por causa das pedras cinza que faziam total parte da sua construção:

- Bem – disse Mauro – essa casa data de 1892, é uma herança que foi passando de geração para geração, mas claro que ela não é como originalmente, vou lhe mostrar uma pintura.

Dona Zilda assustou-se quando notou que os móveis do antigo morador ainda estavam lá, e eram móveis muito antigos que hoje em dia valem uma fortuna, havia desde cadeiras e sofás da Era Vitoriana, até banheiras sujas e emboloradas nos três banheiros. A casa em si era muito boa, se não fosse por toda aquela tralha deixada para trás. Mas Dona Zilda pensou no bom dinheiro que ganharia vendendo todos àqueles móveis:

- Mauro, quem era o antigo dono? – perguntou Dona Zilda, enquanto entrava em um dos quartos.

- Veja só, essa é uma pintura feita em 1892, no dia exato em que a casa foi terminada – disse Mauro ignorando a pergunta feita anteriormente.

O quadro era enorme, pegava quase uma parede, e retratava dez pessoas na frente de uma casa, que para Dona Zilda, parecia ser a de algum filme em preto e branco. O quadro era tão perfeito que parecia uma fotografia, e os pelos do braço direito de Dona Zilda arrepiaram-se.

O tour pela casa continuava, e agora Mauro falava sobre a quão boa era a estrutura da casa, e como os encanamentos eram novos, mas Dona Zilda se sentiu atraída por um cômodo em particular. Era uma porta feita de madeira com detalhes maravilhosos de anjos e demônios, uma porta que parecia ter sido feita por Michelangelo, os entalhes lhe lembraram de sua viagem a Florença:

- E este quarto? – perguntou ela ao corretor.

- Bem, esse era o quarto do antigo dono, podemos dar uma olhada.

Foi uma resposta estranha, pensou dona Zilda, era como se o corretor fosse passar reto por aquela porta tão maravilhosa, que parecia esconder os segredos do Céu e do Inferno.

A chave que abria a porta estava no bolso da calça de Mauro, era uma chave grande e também com entalhes, e ele disse que ela não cabia no chaveiro junto com as outras.

Assim que a porta se abriu, Dona Zilda ficou maravilhada com a quantidade de livros que havia ali. O cômodo não era grande, mas havia muitos livros de capas antigas, em torno das paredes.

O lugar parecia um antigo laboratório, cheio de tubos de ensaio e vidros contendo fetos irreconhecíveis de animais cujas almas se esvaíram há muito tempo. Dona Zilda olhou vidro por vidro, livro por livro, e o lugar tinha um cheiro característico de formol e naftalina. Mauro andava nervoso, de um lado para o outro, e finalmente disse:

- Ele era médico. O antigo dono era médico.

Dona Zilda notou que o médico também era fã de poesia, pois havia papéis amarelados em cima de uma antiga mesa, mantidos ali por uma pedra perfeitamente redonda e esverdeada.

Nos papéis havia poesias sem assinatura e algumas com os nomes de seus respectivos autores, mas eram nomes esquecidos no tempo, nomes que poucas pessoas conheceram.

Dona Zilda continuou olhando o cômodo, e notou um quadro com a pintura de um homem. Ele era branco, cabelos castanhos até os ombros, e uma barda muito grande, que quase escondia seu rosto. Dona Zilda pensou que ele parecia um lobisomem, mas um belo lobisomem.

O quarto tinha hipnotizado dona Zilda, todos aqueles livros antigos dos mais variados temas, desde anatomia até filosofia e alquimia, tudo absorvido pela mente de um homem que jazia pendurado numa parede. Quem teria sido ele de verdade?

- Quando foi que ele morou aqui? -perguntou dona Zilda.

-Bem -disse Mauro sentando-se na única cadeira do lugar -ele morou aqui até 1983.

- Ele se mudou?

- Sim e não -  respondeu Mauro enquanto se levantava da cadeira como alguém que não quer prolongar o assunto.

- Então o que houve com ele? - perguntou Dona Zilda se sentindo irritada e impaciente com a falta de honestidade e profissionalismo do corretor.

- Bem... - e antes que Mauro pudesse responder, fora salvo pela campainha.

Antônio, o filho de Dona Zilda, estava ansioso durante sua aula de tênis para conhecer a tal casa da qual sua mãe havia falado. Sendo assim, saiu da aula o mais rápido possível e foi para o endereço do imóvel.
Enquanto dirigia, ele sentiu certa tontura, e parou o carro em frente a uma loja de antiguidades. O nome da loja era “Passado”, e ele riu devido ao nome óbvio, mas ao mesmo tempo original. Devido ao mal estar, Antônio resolveu entrar na loja para comprar uma garrafa d'água ou pedir um copo com água.

Assim que abriu a porta da loja, Antônio se deparou com uma senhora de uns 70 anos, muito bem arrumada, aparentando ser a dona:

- Olá - disse Antônio- você vende água?

- Oh me desculpe, mas não vendemos bebidas ou alimentos meu jovem, só coisas velhas, como eu.

- É que não estou me sentindo bem, acho que minha pressão baixou por causa do calor, poderia me dar um copo d´água?

- Claro! Só um minuto.

Antônio ficou olhando em volta enquanto a mulher foi buscar sua água, e sentia o ar fresco lhe secando o suor da testa. Assim que a mulher voltou com seu copo, ele comentou que estava indo se encontrar com sua mãe para ver uma casa que estava à venda naquele bairro. A mulher perguntou que casa era, e ele disse o número e a rua:

- Ah sim – disse a senhora animada – conheço a casa e o antigo dono. Ele era um homem muito inteligente, um médico renomado na cidade além de muito bonito, eu e as moças vivíamos criando situações e doenças param nos encontrarmos com ele, mas sempre foi em vão, era um recluso, e só saía de casa para trabalhar no hospital do centro.

- E ele se mudou por quê? – perguntou Antônio.

- Bem, ninguém sabe ao certo. Alguns dizem que ele fugiu devido ao escândalo com uma de suas pacientes, outros dizem que ele foi morto e sequestrado, mas a questão é que ele simplesmente desapareceu, e sua única parenta e sobrinha colocou a casa a venda depois de todos esses anos, pois tem certeza de que ele não voltará.

Antônio queria prolongar o assunto, mas seu celular tocou e era sua mãe dizendo para ele se apressar. Ele agradeceu pela água e se foi.

Assim que entrou na casa guiado pelo corretor, Antônio viu todos os cômodos até que sua mãe disse:
- Venha Antônio, você vai adorar isso! – e o puxou pelo braço até o tal quarto.

Ao contrário de dona Zilda, Antônio ficou horrorizado com o lugar. Todos aqueles livros empoeirados e vidros com estranhas criaturas, aquele cheiro de morte o nauseavam. Ele sentou-se à mesa cheia de papéis antigos e começou a lê-los. Um papel em especial chamou sua atenção.

Era uma folha mais grossa, quase uma cartolina, e diferente dos outros papéis, não estava amarelado, mas sim branco como novo. Estava completamente escrita, frente e verso, e havia alguns símbolos que Antônio não conseguiu reconhecer completamente, mas tinha uma ideia do que significavam:

- Mãe – disse ele enquanto examinava mais o papel – Eu acho que esse cara era satanista.

Dona Zilda se aproximou e pegou o papel em suas mãos. Ela olhou, olhou e olhou, até que começou a ler o que estava escrito:

E DOS TEMPOS PRIMÓRDIOS RETORNA O REI QUE JAZ SOTERRADO NO SUBMUNDO DO CERTO E ERRADO INEXISTENTES. ACOMPANHA TUA GLÓRIA ENQUANTO O SANGUE JORRA DA CABEÇA ESQUECIDA SOB A PEDRA DE FOGO...

E antes que Dona Zilda pudesse continuar, Antônio arrancou o papel de suas mãos:

- Pare mãe! Não vê que isso é algum tipo de invocação? Não leia mais isso!

Dona Zilda riu e virou-se para o corretor:

- Vou ficar com ela.

O corretor, que não parecia muito animado, disse:

- Muito bem, farei o contrato essa semana.

Dois meses depois, Dona Zilda e Antônio estavam morando em sua nova casa. Os móveis foram trocados, as paredes pintadas, fizeram um pequeno jardim nos fundos, e a cozinha havia recebido novos pisos e armários. O único cômodo que dona Zilda, depois de muitas discussões com Antônio, não moveu um único móvel, foi o quarto do antigo dono. Antônio queria queimar tudo o que tinha lá, e contou a sua mãe sobre o desaparecimento misterioso do médico, mas ela não lhe deu ouvidos, e disse que a casa era dela.

Meses se passaram e a paz reinava na nova casa, até que um dia, Antônio abriu a porta para ir ao mercado, e deu de cara com um homem prestes a apertar a campainha:

-Pois não - disse Antônio.

- Bom dia, dona Zilda mora aqui?

- Mora sim.

-Meu nome é Marcio, e ela me chamou pelos meus serviços, sou comprador de móveis antigos, um colecionador na verdade.

- Ah sim, pode entrar – disse Antônio enquanto abria a porta para o homem passar – Acredito que minha mãe irá vender os móveis desse quarto – e abriu a porta para o homem entrar.

- Com certeza – disse o homem olhando em volta como um cachorro olha alguém comendo um pedaço de carne.

Antônio desistiu de sair, e ficou fazendo companhia para o homem que disse estar muito interessado naqueles móveis, pois além de muito antigos, pareciam ter história.

Antônio não gostava de ficar naquele cômodo, algo o incomodava, parecia que o ar era mais grosso, difícil de respirar, então ele notou um anel na mão do homem que parecia ser feito da mesma pedra sob a mesa que segurava os antigos papéis:

- O seu anel é feito dessa mesma pedra? – perguntou Antônio enquanto mostrava a pedra ao homem.

- Parece que sim, ganhei esse anel de um velho amigo, não tiro do dedo desde então.

Antônio não quis estender o assunto, e perguntou ao homem o que exatamente ele queria comprar. Ele disse que gostaria de tratar do assunto com dona Zilda, e que voltaria mais tarde.

Mais tarde naquele dia, Antônio estava em seu quarto lendo um livro, quando a imagem do tal comprador lhe veio à cabeça. Sua mãe não havia avisado nada sobre comprador de móveis nenhum, e ele não havia falado com ela ainda naquele dia.

Assim que dona Zilda chegou em casa, por volta das três da tarde, Antônio foi a seu encontro lhe contar sobre o comprador:

- Ah sim meu filho, já tratei desse assunto por telefone hoje, a propósito ele vem para jantar.

-Quem vem para jantar, mãe? – perguntou Antônio perplexo.

- O comprador! O nome dele é Márcio – disse Dona Zilda enquanto abria a geladeira para guardar as frutas que comprara no mercado.

Antônio não quis retrucar e nem fazer mais perguntas, mas ele sabia que havia algo estranho nisso tudo.
Às exatas nove horas da noite, a campainha da casa de Dona Zilda tocou, e ela levantou-se do sofá animada para abrir a porta para Márcio.

Ele estava muito elegante, perfeitamente vestido para um grande evento como o Oscar, e como se ele fosse um indicado.

Dona Zilda deu um abraço longo e amigável em Márcio, e Antônio notou que ele não moveu um músculo sequer para abraçar sua mãe de volta. Aliás, Antônio não fez outra coisa durante aquele jantar, a não ser observar aquele homem tão estranho e que lhe parecia familiar.

Dona Zilda havia preparado um tremendo banquete: risoto de camarão, mignon ao molho madeira, batatas assadas, strogonoff e de sobremesa um cheesecakede framboesa.

Por mais saborosa que toda aquela comida parecesse algo no estômago de Antônio se revirava e ele não sabia o motivo. Por um momento ele achou que estivesse doente, ou ficando doente naquele instante, mas a verdade é que toda aquela situação o havia deixado muito desconfortável. Tudo parecia estar em câmera lenta: sua mãe rindo e dizendo alguma coisa ao Márcio, enquanto ele a olhava maliciosamente de um jeito sombrio e maníaco, e os dois levando à boca garfadas de batatas alternadas com mignon, e depois strogonoff enquanto bebiam vinho de umas taças que sua mãe havia comprado na semana passada, tudo isso como se fosse um curta-metragem em câmera lenta. Ele pediu licença para se retirar da mesa.
Antônio foi até o banheiro mais próximo dali, que ficava bem ao lado ao escritório do antigo dono. Assim que lavou o rosto e se olhou no espelho, sentiu o suor gelado escorrendo pelo rosto e percebeu que não poderia voltar naquele instante para a cozinha, e sabia que ele não iria fazer falta. Decidiu então se sentar no escritório.

Ele ficou ali sentado à mesa, olhando em volta e pensando no que poderia estar errado, e porque ele se sentia tão impotente em relação a isso.  De repente, como se alguém o tivesse sacudido para acordá-lo de um sono profundo, Antônio olhou para o quadro pintado do médico. E pronto. O médico era o comprador.
Eles eram idênticos, ele tinha certeza de que era a mesma pessoa. Ele lembrou-se então do que a dona da loja de antiguidades havia dito sobre o antigo dono ter desaparecido. Talvez ele tivesse voltado e estivesse especulando quem havia comprado sua casa, etc...

No mesmo instante, Antônio saiu de casa sem dizer nada, e foi até a loja conversar com a mulher. Enquanto dirigia ele se lembrou de que já era noite e talvez a loja estivesse fechada, mas por sorte as luzes estavam acesas.

Ele desceu do carro e bateu palmas, até que a mulher abriu a porta:

- Olá querido! Desculpe-me, mas já fechamos.

- Não se preocupe, não vim comprar nada, só queria conversar com a senhora, pode ser?

- Claro, entre.

A elegante senhora abriu as portas de sua loja, e trouxe duas cadeiras para que se sentassem:

- É o seguinte, dona...?

- Joana. Meu nome é Joana.

- Sei que vou parecer um louco, mas acontece que o médico do qual a senhora tinha me falado que morou na minha casa antes de mim, voltou.

- Como assim?

- Ele está em casa jantando com a minha mãe!

Assim que Antônio disse isso, dona Joana levantou- se da cadeira aterrorizada e começou a chorar:

- Você tem certeza do que está dizendo, filho? Oh meu Deus, que os anjos nos ajudem... – Antônio a interrompeu:

- O que a senhora sabe sobre ele?

- Então era tudo verdade – continuou dona Joana como se não ouvisse mais o que Antônio dizia – tudo o que as pessoas diziam e ninguém acreditava, tudo o que a minha Marcela dizia era verdade meu Deus, como pude ser tão cega?

Antônio esperou dona Joana se acalmar um pouco, e olhando para os fundos da loja avistou um galão de água, foi então até lá e trouxe dois copos:

- Escute meu filho – disse dona Joana – o que vou lhe contar é considerada uma lenda por aqui. Uma história de terror para assustar crianças.

- Eu moro aqui desde que nasci, cresci, estudei e me casei aqui. Conheço todos e sei de suas histórias, ou o que as pessoas comentam.

- O homem que morava na sua casa, era o renomado médico da cidade, doutor Ângelo Saperstein. Ele era um homem considerado muito culto, já naquela época ele havia viajado pela Europa e pelos Estados Unidos, falava russo e inglês, e era um solteiro incontestável. Todas nós queríamos saber o motivo de um homem desses ainda ser solteiro, afinal além de rico ele era muito bonito.

- Ele era o único hematologista da cidade, sendo assim todo mundo já havia se consultado com ele, ou conhecia alguém que havia. Um dia, fui consulta-lo e pedir para fazer um exame de sangue, pois estava me sentindo muito cansada sem motivo, e foi quando ele me disse algo que fez arrepiar meus cabelos: “Joana, você acredita no diabo?” Eu não sabia o que responder, afinal não é o tipo de pergunta que você espera ouvir de um médico, mas respondi” acredito que ele exista, mas não acreditaria em nada do que ele diz.” Então ele me respondeu” pois deveria, ele é um ótimo companheiro” e riu. Ele deu uma risada curta, mas alta, nunca me esqueci, e foi então que fui embora e nunca mais voltei lá. Depois desse dia as pessoas também começaram a contar histórias e fatos curiosos sobre Saperstein.

- Uma moça que trabalhava aqui, Marcela, trabalhava de vez em quando como faxineira na casa dele, e me contou uma história que eu nunca acreditei, até hoje.

- Ela me contou que estava no banheiro lavando o chão, quando ouviu vozes vindas do escritório de Ângelo. Ela disse que sabia não haver mais ninguém na casa além deles, e por um momento achou que fosse o rádio ligado, mas as vozes pareciam muito reais, e ela resolveu dar uma olhada no escritório. A porta estava fechada, e ela disse que abriu lentamente na esperança de que não fosse notada, e caso fosse, daria a desculpa de ter esquecido a vassoura por lá ou algo assim. Quando abriu a porta, ela notou que estava escuro e tinham muitas velas acesas. Saperstein estava sentado no meio da sala rodeado por pessoas com vestimentas pretas e encapuzadas, por isso ela não viu seus rostos. Eles cantavam uma canção estranha, em uma língua na qual ela não fazia ideia. Ela disse então que uma das pessoas que estavam na roda levantou-se e ficou de frente para o doutor que agora jazia ajoelhado. A pessoa disse alto e em bom som, como uma voz masculina um tanto quanto fina:

Bebei do meu sangue que será seu. A eternidade lhe acompanhará assim como o conhecimento e a maldição dos sete mares que jamais será desfeita. Traga-me 13 almas, assim como me trouxeram a sua e a escuridão reinará sobre nós. Viva Satã!

- Ela disse que após dizer tais frases, as pessoas tiraram suas vestimentas, e Marcela segurou um grito abafado e de horror, ela disse que as pessoas eram completamente deformadas, corcundas, horríveis, ela nem sabe ao certo se eram pessoas. O fato é que ela correu de lá e mudou-se da cidade após contar tal história e ninguém acreditar nela. Pobre menina. Agora corra, e tire sua mãe de lá.

Antônio andou o mais rápido que pode, e enquanto isso tentava ligar para sua mãe que não atendia ao telefone. Assim que chegou, ele entrou às pressas e encontrou sua mãe e Saperstein sentados na sala de estar, bebendo o que parecia ser um conhaque:

- Antônio meu filho, onde você foi? – perguntou dona Zilda tranquilamente, e Antônio notou o anel em seu dedo.

- O que é isso? – disse ele puxando o anel violentamente do dedo de sua mãe.

- Esse homem é o demônio! Saia da minha casa – e pegou o doutor pelo braço e o arrastou até a porta, jogando-o na rua.

- Você está louca! Como pode trazer esse homem aqui? – gritava Antônio enquanto sua mãe o olhava calmamente.

- Meu filho – interrompeu dona Zilda – não sei por que todo esse drama. Esse homem é um perfeito cavalheiro, conversamos a tarde toda e ele tem um conhecimento muito vasto sobre tudo. Agora ele se foi, provavelmente não volte mais, mas me deixou este presente – mostrou o anel – e me disse que fiz muito bem em ler o pedaço de papel que estava em cima da mesa quando viemos visitar a casa – ela riu. É um encantamento e tanto. Dona Zilda virou as costas e foi em direção ao seu quarto.

Quase um ano depois do ocorrido, dona Zilda foi visitar uma amiga no Rio, e nunca mais foi vista. Antônio ainda mora na casa, mas mandou fecharem o antigo escritório e queimou tudo o que havia lá.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

No Terreiro De Macumba




No terreiro que frequento, não se faz nenhuma prática religiosa que seja contra a caridade e a benevolência. Usamos da caridade para que em contatos com guias e entidades, as pessoas que passem por consultas, tenham um breve conforto nas situações as quais procuram receber orientações. São orientações que podem variar desde um banho de ervas para desiquilíbrios psicológicos e espirituais, como passes, conversas e etc...

Sabemos que nem todas as casa funcionam dessa maneira, existem muitos charlatões que cobram por aquilo que pessoas sérias fazem de forma gratuita, que verdadeiramente praticam a caridade. É muito importante ressaltar isso, porque quando se trata de cultos afro-brasileiros, até mesmo simpatizantes de assuntos "assombrados" podem pautar em suas interpretações um pouco de preconceito.

Da mesma forma que existe charlatões, existem também pessoas que sabem o que estão fazendo e utilizam de seu conhecimento para a pratica de desejos mundanos, comercializando assim vinganças, desavenças e todo o tipo de crueldade.

Certo dia, durante os trabalhos, os quais chamamos de "gira", onde os médiuns, incorporados de seus guias dão consultas e passes, aconteciam de forma normal.

A pessoa responsável pela coordenação de consulentes a adentrar ao recinto, chamava os números de senhas uma a uma, a pessoa era chamada, levantava, tirava os calçados e adentrava ao salão onde os trabalhos ocorriam e então assim seria atendida pelo primeiro médium que estivesse desocupado.

Lembro me bem desse dia, pois minha mediunidade é extremamente consciente, essa história de que as pessoas "apagam" quando incorporam é extremamente rara nos dias de hoje, porém é uma muleta para aqueles que ainda são inseguros e precisam afirmar que são inconsciente para que tenham mais segurança aos olhos de terceiros. As pessoas adentravam uma a uma a medida que iam sendo chamadas, caso fosse a primeira vez dela, ela seria encaminhada ao "guia-chefe" dos trabalhos, os guias do dirigente da casa.

Tudo estava normal até uma senhora entrar e ser encaminhada para o guia-chefe, era a primeira vez dela.

Essa senhora, estava com a barriga extremamente inchada, como a de uma gestante, andava com ajuda de outras pessoas, seus pés também inchados mau entravam no chinelo, a coloração dela era branca com tons esverdeados perto do pescoço, olheiras bem profundas e escuras, um semblante de puro sofrimento.

Assim que essa senhora ficou a frente do guia, era um Caboclo um índio, pediu para que arrumassem uma cadeira para que a mulher se sentasse.

Algumas coisas acontecem durantes os trabalhos, que são explicitas provas de que a espiritualidade é presente mesmo. Como que de forma organizada e como se todos os guias estivem em conexão, sem ser dita uma palavra, todos os caboclos, deixaram de atender os consulente que com eles estavam, orientaram que os mesmos voltassem na próxima semana, já desocupados, todos os caboclos que estavam presentes, posicionaram se numa "meia lua" atras da cadeira onde a senhora aparentemente doente estava sentada. Posicionando suas mãos (as mãos dos médiuns) em direção da cabeça, (atras da nuca), o caboclo chefe, entoava cantigos, e passava ramos de folhas e ervas na senhora.

A cantiga era assim:

"Katendê ÊÊ Katendê"

Katendê, é uma divindade cultuado no candomblé de origem Bantu, representa a força das folhas e das ervas.

Apesar de os trabalhos serem de umbanda, aquele caboclo estava cantando, e rogando a katendê a ajuda necessária para a ocasião.

Prontamente a senhora que alis estava sentada, começa a demonstrar espasmos de ânsia, porém sem nada a vomitar eles pararam conforme as ervas eram passadas em seu corpo. Então o seguinte dialogo acontece entre o Caboclo e ela.

- Fui a diferentes médicos, fiz diversos exames e nada me foi diagnosticado. 
- Não sou adepta a "macumbarias" (foi exatamente esse o termo utilizado), nem acredito em nada disso, mas diante do meu estado, essa é a única opção que me resta, fui em diversas igrejas, já tentei exatamente de tudo. 
- Meus órgãos estão inchados, meus rins não estão funcionando mais, tenho feito hemodialises dias sim e dias não.

Mediunicamente, digo por mim, que registei o ocorrido e incorporado, sentia um cheiro muito forte, um cheiro parecido com aquele que sentimos de jaulas no zoológico.

A senhora, foi relatando tudo o que estava sentindo por meses e o caboclo ouvindo pacientemente, enquanto ainda passava as ervas.

Após ouvir toda aquela lamentação, o caboclo pergunta a ela:

- Peço que a senhora, que nesses próximos minutos, entre em contato com Deus, e da forma mais sincera que se coração conseguir, reveja toda sua vida, preste muita atenção naquilo que no fundo do seu coração mais te incomoda. 

Enquanto a senhora fazia o que lhe havia sido pedido, o caboclo novamente passa folhagens e ervas nos braços e pés.

Passado alguns minutos, um choro compulsivo toma conta dela, ela havia encontrado em seu intimo aquilo que precisava.

E então o caboclo pergunta o por que estava chorando.

A senhora responde que quando ainda era moça, foi pivô de um desentendimento com sua irmã, por motivos banais os quais ela não queria revelar ali. E que desde então sua consciência nunca fora a mesma, por mais que essa sútil lembrança fosse enterrada no lodo do esquecimento do inconsciente, ela ainda ficou de certa forma viva.

O caboclo então perguntou a quanto tempo isso tinha ocorrido, e obteve a resposta que há mais 35 anos.

A entidade de olhos fechados, parecia estar visualizando todo o ocorrido e então começa a dizer.

- Não faz muito tempo, mas antes de adoecer a senhora visitou essa sua irmã ? 

Obtendo resposta positiva.

Então o caboclo pega metade de uma vela, passa pela barriga desta senhora, e diz, quando essa vela acabar o sofrimento da senhora estará terminado.

O mesmo pede para que todas as outras entidades sejam desincorporadas dos outros médiuns, logo após isso, o caboclo deixa a mulher sentada na cadeira com a vela em sua frente fixa ao chão e pede para que todos os médiuns vão para o salão de espera, o qual já se encontrava vazio, como acontece perto do encerramento.

O caboclo então fala, que aquele dia, ele ia precisar muito do discernimento e da fé de todos os presentes, que aquele seria uma das situações mais sérias que poderiam ter visto ali.

Ele explica que aquela senhora, comeu um alimento preparado por sua irmã, um simples bolo em sua ultima visita, esse bolo havia sido feito com o objetivo de prejudica-la, haviam ingredientes para isso e também havia sido "encantado" para isso. Nos termos comuns de terreiro "era um alimento rezado".

O objetivo daquilo tudo era fazer a irmã sofrer, sofre e sofrer com doenças e moléstias, porém que jamais conseguisse o alivio da morte, ela iria sofrer tanto que somente a morte conseguiria aliviar, mas o feitiço também consistia em mante-la viva para que o alivio nunca a alcançasse.

Todos chocados com a gravidade do caso e pela seriedade e teor de tristeza que o caboclo colocará na notícia, ouviram no outro salão aquele barulho de vômito e regurgitação.

A senhora estava vomitando e todos foram acudi-la. O que havia sido expelido dela, era muita água, com um cheiro muito forte. E logo após seus vômitos terminarem ela cai desfalecida.

Todos os médiuns, chamando e tentando reanima-la, sem nenhum sucesso. O caboclo, disse que iria cuidar daquela alma e que o sofrimento dela teria acabado, desincorporando de forma abrupta.

O médium dirigente, estava completamente perplexo, com tudo aquilo que estava acontecendo, voltando do transe, viu uma senhora falecida em sua frente, os médiuns desesperado e o familiar daquela senhora ainda mais desesperado.

Foi chamada a ambulância, onde os para-médicos, haviam confirmado o óbito. A policia civil e também a pericia, foi foram chamadas ao local, tudo foi investigado e também visto pelas câmeras de segurança que ficavam em todos os salões do terreiro. Não houve processos criminais, nem nada por conta do falecimento, ninguém foi indiciado, não sei o que constou como a causa da morte na autópsia no IML, mas só quem presenciou tudo isso sabe realmente como foi e o que foi.

Quando o Caboclo havia dito que quando a vela terminasse o sofrimento dela iria acabar, já sabia o que iria acontecer.

Foi um dia que nunca mais esquecerei.

A história é essa, sei que é um pouco forte. Caso não seja aprovada, terei o prazer de aqui escrever outras. 

Entrei na Deep Web

Deep Web é uma das coisas mais incríveis do mundo. Não é por causa das coisas doentias que podemos encontrar lá, mas porque é um...