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sexta-feira, 10 de julho de 2020

SETEALÉM


A seis meses, fui com a minha namorada ao cinema. Fomos comemorar dois anos de namoro. Fizemos aquele programa básico: jantamos no shopping e depois fomos assistir ao filme. Assim que saímos da sessão, caminhamos pelos corredores para olhar as vitrines. Minha namorada disse que iria comprar uma bolsa e me pediu para esperá-la próximo a uma revistaria. Desconfiei que ela queria me fazer uma surpresa de namoro, concordei e fui olhar algumas revistas da banca. Disse a ela que a aguardaria lá e ela retrucou dizendo que não demoraria.

 

Assim que ela se afastou, fui ao banheiro que ficava exatamente no corredor em frente à revistaria. Havia quatro ou cinco pessoas no local que é bem grande. Todos os mictórios, porém, estavam ocupados e, por isso, fui a um reservado. Jogo rápido, nem cheguei a travar a porta. Tirei meu celular do cinto e o coloquei sobre uma apara de madeira.

 

O mais estranho é que não fiquei nem dois minutos dentro do reservado. Ouvi risos de crianças no banheiro e conversas. Assim que terminei de urinar, saí. Não sei se consigo descrever, mas já havia algo estranho no banheiro. Não sou muito de reparar em detalhes. Minha namorada é. Ela é virginiana. Apesar disso, notei que algo havia mudado. Começando pelas luzes que estavam amareladas e não brancas. Muito amareladas, quero dizer. Uma faixa verde bem grossa cruzava a parede e os espelhos estavam menores. Não havia ninguém lá dentro. Nem as crianças que haviam gargalhado há poucos segundos.

 

Lavei as mãos e achei que estivesse ficando louco. Para mim, a água estava meio morna e muito, muito grossa. Nojenta, para falar a verdade. Procurei por papel e não encontrei. Saí balançando as mãos para secarem no ar.

 

Fora do banheiro, achei que fosse desmaiar. Achei que havia saído pela porta errada ou entrando em algum corredor novo. Bom, pelo menos, foi o que tentei acreditar.

 

 

O shopping estava parecendo, na verdade, uma galeria. Ainda era um shopping, conceitualmente, mas estava bem mais velho e desgastado. A luz era fraca e as lojas pareciam amontoados de produtos. Tudo muito feio.

 

Andei acelerado até uma área mais aberta e tive a certeza de que não estava mais em um lugar conhecido. Nada era parecido com o que eu já havia visto em algum lugar na minha cidade ou até na televisão. Começando por pequenos detalhes que me assustaram. Havia uns aquários do tamanho de latas de lixo espalhados em todo lugar. Dentro desses aquários, eu identifiquei uma espécie de pano, sei lá, parecia um pedaço de cobertor roxo que ficava se mexendo dentro desses aquários. As pessoas iam até esses aquários e colocavam as duas mãos em cima e começavam a rir! E eram risadas feias, como se tossissem com o peito cheio de catarro. Fiquei parado, olhando para esses aquários. As pessoas vinham em grupos de dois ou três, encostavam e riam. Mexi a cabeça para os lados rapidamente procurando minha namorada. Tudo o que eu queria era entender o que estava acontecendo e ver um rosto conhecido.

 

As pessoas passavam por mim e me ignoravam. Eram parecidas com pessoas normais, mas ainda assim, não eram totalmente normais. Elas eram parecidas ENTRE ELAS também. Não idênticas, como gêmeos. Não sei explicar. É como quando você viaja para um país diferente onde as pessoas têm traços parecidos, mas também têm traços particulares.

 

Ah, e a revistaria não estava mais lá.

 

No local, um homem vendia peças ou algo assim. Ele tinha uma mesa grande de madeira rústica com vários objetos pretos que pareciam ser de ferro. Os objetos tinham formatos estranhos: ganchos, ferraduras e engrenagens. Cheguei perto e ele perguntou se eu ia trocar ou comprar. Eu não respondi.

 

Uma menina de, mais ou menos, sete anos, se aproximou e pegou uma peça de ferro que parecia uma colher negra e mostrou para a mãe dela. A mãe se aproximou e pegou uma carteira para pagar. A garota apontou a colher para mim e eu pude ver bem seu rosto. Era normal, mas também tinha algo de muito estranho. Não sei se eram as sobrancelhas ou a distância dos olhos. Senti um medo inexplicável. O olhar da menina passava uma maldade sem tamanho.

 

O homem respondeu para ela:

 

- Não, não, ele não vai comprar, pode pegar. Acho que ele nem é daqui de Setealém.

 

A mãe me olhou com nojo. Tomou a colher da menina, colocou de volta na mesa e puxou a filha pra longe de mim, como se eu tivesse uma doença. Comecei a ficar tonto e me sentei em um banco de madeira que era muito parecido com os bancos normais de shopping, exceto que esse era bem mais baixos e só acomodavam uma pessoa. Vi outros bancos desses naquele local.

 

Um som alto tocou e todo mundo parou e olhou para cima. Era um barulho alto e grave como aquelas buzinas de navio que a gente vê em filme. Depois que o som parou, todos retomaram seus caminhos.

 

Pensei na minha namorada e na minha mãe. Aquilo só podia ser um sonho. Levantei rápido e fiquei tão tonto que precisei me apoiar em uma vitrine que, falo de todo o meu coração, vendia pombas vivas. Pombas! Umas dez pombas andavam por lá, tentavam voar e se bicavam atrás da vitrine de vidro. Gritei.

 

As pessoas começaram a me olhar e a apontar para mim. Cochichavam.

 

Decidi ligar para minha namorada. Coloquei a mão no cinto e meu celular não estava mais preso a ele. Eu havia esquecido na apara do reservado. Voltei pelo corredor e entrei rapidamente no banheiro. Três homens estavam sentados no chão do banheiro. Um deles, debaixo da pia. Conversavam algo que eu não quis nem saber. Pulei por cima deles e entrei no reservado.

 

Meu celular ainda estava lá. Tranquei a porta, sentei no vaso e tentei ligar para minha namorada, mas não consegui. O aparelho estava simplesmente apagado. Apertei os botões com força, mas não adiantou. Ouvi risos de crianças novamente. Fiquei lá uns dez minutos, até que alguém bateu na porta. Era o rapaz da revistaria. Ele disse que havia me visto entrar no banheiro e que minha namorada já estava me aguardando na banca dele. Ele perguntou se eu estava passando mal ou algo do gênero.

 

O banheiro estava claro e o shopping estava normal. Minha namorada não acreditou em mim, mas viu que eu estava realmente muito nervoso. Foi o pior dia da minha vida. Estraguei nossa comemoração passando mal do estômago horas depois.

 

Não voltei ainda ao shopping e estou pensando seriamente em fazer terapia. Eu achei que tinha ficado louco até achar essa comunidade com o mesmo nome dito pelo homem daquela banca bizarra. Setealém. Deus me livre existir um lugar daquele."

Passagem Para ( SETEALÉM )


1994. Eu estava no segundo ano da faculdade. Tinha dezenove anos e lamentava o fato de que só poderia cursar o período noturno a partir do próximo ano. Os dois primeiros anos eram obrigatoriamente matutinos, o que dificultava a busca por empregos ou estágios. Até então, minha experiência se resumia a um longo período como gerente de uma vídeo-locadora, que era como se chamava o Netflix da época.

 

Mesmo morando longe da faculdade, eu adorava o caminho de volta. Os longos trechos à pé até

 

chegar no ponto de ônibus para, em seguida, tomar o Metrô me permitiam observar como as pessoas eram diferentes em seus trajes, gestos e falas. Tudo aquilo era subsídio para novas histórias que eu, diariamente, escrevia. Também aproveitava o caminho para ler.

 

Normalmente, caminhava até lá para tomar um ônibus, qualquer ônibus – o primeiro que passasse – pois todos levavam para um ponto da avenida onde eu facilmente acessaria o Metrô. Não importava o nome, o número ou a cor do ônibus, todos obrigatoriamente iam até o fim da avenida, para então, seguirem seus itinerários. Isso era bom, porque eu não me demorava mais que dois minutos no ponto.

 

Naquela tarde quente de outubro, após uma exaustiva aula de Mercadologia, segui meu caminho costumeiro até uma grande e famosa avenida há alguns minutos do campus. Cheguei no ponto e coloquei um CD, acho que do Nação Zumbi, no discman. A pilha estava acabando e a voz do Chico Science parecia demoníaca. Um ônibus chegou e parou. Entrei e substituí o discman por um livro.

 

Em média, o trajeto demorava de vinte e cinco a trinta minutos por causa do trânsito e, quando eu tinha sorte de encontrar um banco vazio, lia várias páginas. Naquele dia, nem quinze minutos se passaram e senti a mulher ao meu lado, no banco, me cutucar. Parei de ler e olhei para ela.

 

- Você não vai para Setealém, vai? – ela perguntou.

 

Apertei os olhos, tentando entender o que ela havia dito. Teria sido Santarém?

 

Ela insistiu:

 

- Esse ônibus vai para Setealém. É melhor você descer.

 

Sorri para ela. O nome “Setealém” havia ficado claro, mas o conselho não fazia sentido. Olhei para os lados e todos, absolutamente todos do ônibus estavam me olhando. Uma outra mulher, em pé, um pouco mais à frente, falou:

 

- É, vai...desce, moço.

 

Próximo a ela, um rapaz com uma pasta na mão acenou positivamente com a cabeça e foi mais incisivo:

 

- Desce aí!

 

Antes que eu perguntasse o que estava acontecendo, o cobrador – que também me olhava, com o maço de notas na mão – gritou para o motorista:

 

- Vai desceeeeer!

 

O ônibus parou na hora. Ali não era um exatamente um ponto, mas eu não liguei. Levantei-me rapidamente do banco e fui em direção à porta aberta. As pessoas no corredor abriram caminho acompanhando-me com o olhar.

 

Desci.

 

Confesso que, na hora, dezenas de pensamentos me ocorreram. Seria um ônibus particular? Não. Havia um cobrador, afinal de contas. Teriam me confundido com alguém? Talvez. Assim que pisei no asfalto, o ônibus retomou o caminho, até que, estranhamente, virou à direita em uma ladeira de paralelepípedos. Um trajeto incomum.

 

Aquele nome "Setealém" nunca mais saiu da minha mente. Seria um bairro? Uma cidade? Perguntei aos meus conhecidos e até olhei no Guia de Ruas, uma espécie de Waze do século passado, onde seu dedo indicador fazia o papel do carrinho. Ninguém nunca reconheceu esse nome nas proximidades ou até em outro lugar do mundo.

 

Sei que, dias depois, passei a sonhar com Setealém e, desde então, pelo menos uma vez por mês me vejo em suas estranhas ruas, durante o sono.


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Deep Web é uma das coisas mais incríveis do mundo. Não é por causa das coisas doentias que podemos encontrar lá, mas porque é um...